Marta Dias, quando lhe foi proposta a encenação, encontrou a dimensão de homenagem como justificação na peça de Michel Tremblay. Não se passa nada de extraordinário, não é uma peça onde há assassínios ou duelos ou guerras ou tragédias, mas apenas a história de um filho sobre a sua mãe que entretanto já desaparecera fisicamente, aquele a funcionar como narrador e a mãe a ressurgir como uma força da natureza, que interpreta o mundo a partir do prisma de exagero mas de uma grande humanidade.
A pequena mas acolhedora sala Vermelha do Teatro Aberto, ali à Praça de Espanha, acolhe desde anteontem a peça do dramaturgo canadiano Michel Tremblay nascido em 1942, Encore une Fois, Si Vous Permettez (Pelo Prazer de a Voltar a Ver), estreada em 1998 em Montréal.
A peça é deliciosa e de uma profunda análise das pequenas coisas, das conversas, dos modos como se olha e interpreta o que os outros fazem, desde a brincadeira do rapaz de dez anos que atira abóboras para debaixo dos automóveis a ver a reação dos condutores até à opinião humorística da mãe sobre a sua cunhada, que jantava lá em casa rosbife todas as semanas mas que morreu de enfarte: "a tua tia era tão gorda que comeu até se enfartar". Luís Barros (o narrador e filho) está muito bem mas Sílvia Filipe (a mãe) encheu-nos as medidas. Personagem cheia de energia, alegria e humor, o palco inclinado é difícil para os sapatos de salto alto usados pela atriz. Gostei particularmente das recordações da entrada dos media eletrónicos naquela casa: o gramofone, o giradiscos, a telefonia, a televisão. Os discos, as canções, os programas - embora de modo discreto, o autor faz uma reflexão do impacto dos media na nossa cultura.
Os críticos acusam Michel Tremblay de fazer peças atrás de peças com registo autobiográfico: a importância da mãe, a escola de artes gráficas, o trabalho gráfico e a escrita. Tremblay não tem vergonha das suas raízes. Quando jovem, ganhou uma bolsa de estudo para entrar num colégio prestigiado. A ele e a mais 30 alunos foi dito que eram os rapazes de 14 anos mais inteligentes do Québec, com mensalidades pagas no colégio durante quatro anos. Mas ele preferiu seguir a escola profissional e arranjar um emprego como linotipista, como o pai. Na Imprensa Judiciária, onde ele trabalhava como o último linotipista admitido, enviou um manuscrito para a L'Homme, a editora da Imprensa Judiciária. Recusaram o manuscrito, o que o levou a enviar o texto para a concorrente, a Jour, que o aceitou. Michel saiu da editora a assobiar e a não se importar com a chuva miudinha de março que caía. O editor propusera reagrupar os contos intitulados Contos Góticos e transformar o título para Contos para os que Bebem até Tarde. Corria o ano de 1966, o livro seria editado no mês de junho desse ano. Bastaria a história em torno deste facto para despertar a atenção para a peça agora em representação.
A representação da estreia, anteontem, foi serena mas cheia (imagem de promoção da peça, enviada pelo Teatro Aberto).
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