quinta-feira, 17 de janeiro de 2013

Raymond Roussel

Michel Foucault publicou o livro Raymond Roussel em 1963, faz agora 50 anos. Não se deve ler o texto sobre Roussel por comparação ou complemento a História da Loucura na Idade Clássica (1961), o primeiro grande livro do filósofo francês, mas há uma aproximação a Nascimento da Clínica: uma Arqueologia do Olhar Médico, publicado também em 1963. Neste, regista-se uma mudança de perspectiva da patologia geral para a doença mental.

Ora, Roussel (1877-1933), poeta, escritor, autor de peças, músico e entusiasta de xadrez, descoberto pelos surrealistas como um seu antecessor, caso de André Breton, foi visto como louco. As edições de livros, as encenações dos seus trabalhos e a sua vida faustosa foram suportadas pela fortuna elevada herdada do pai, a ida de Paris para Palermo, onde acabou por morrer (ou ser assassinado), viagem extravagante mas decidida nos seus contornos finais por ele - comportaram sempre situações de desviante ou excluído ou marginal. Tudo assuntos que interessaram a Foucault.

Por isso, ao contrário de outros analistas, Foucault não olhou Roussel através da loucura mas pela leitura da obra, de forma distinta da do psiquiatra Pierre Janet, que conhecia o caso, e da de Michel Leiris, autor muito próximo de Roussel. Este, aos olhos de Foucault, aparece-lhe como uma das vítimas da medicalização moderna da loucura. No primeiro capítulo sobre o autor de Locus Solus e Nouvelles Impressions,  Foucault foi directamente ao seu último texto: Comment J'ai Écrit Certains de mes Livres (1932), obra autorizada a publicar após a morte de Roussel, por vontade expressa deste, onde ele revela o segredo da sua escrita.

Este autor construíra um modelo, um procedimento ou jogos de linguagem, como diz Foucault, em que as palavras assumiam significados distintos sempre que colocados uns a seguir aos outros. Casos de lettres (cartas epistolares ou letras gráficas)  e bandes (pano verde ou selvagens de uma tribo africana de um dos seus textos). Ou: vocábulos emparelhados que formam o eco sonoro de palavras nunca enunciadas (p. 39). Isto é um facto de linguagem, em que palavras idênticas dizem duas coisas diferentes (p. 12). O procedimento é uma espécie de purificação dos falsos acasos da inspiração e da fantasia para se colocar perante uma linguagem clara mas impossível de dominar, continua Foucault (p. 34), embora haja "alguns dos seus livros" estranhos ao procedimento (p. 83), como indicaria o próprio Roussel.

Dito de outro modo: as palavras são como que desviadas do seu sentido primitivo para adquirem um sentido novo (p. 13). É deste espaço de deslocamento que nascem as figuras da retórica: metonínimia, sinédoque, antonomásia, litote, metáfora, uma espécie de espaço tropológico do vocabulário. Depois, cada palavra está associada por um domínio de parentesco (p. 29) - do bilhar passa-se ao taco de bilhar, deste à sua incrustação de metal prateado, às iniciais de quem comprou o bilhar e o taco. Há, comenta Foucault, uma segunda navegação em torno dos objectos, uma narrativa repetida indefinidamente (p. 43), encarregada de restituir aos signos o significado (p. 44), com o labirinto ligado à metamorfose (p. 74). Os efeitos do duplo não deixam de se multiplicar (p. 47).


Além disso, há antifrases, como o desenhador que não reproduziu regularmente as malhas da rede sobre a escama do peixe, como se a função da linguagem duplicada estivesse no pequeno intervalo que separa a imitação do que imita (p. 20). Em Chiquenaude, um espectador que conta a peça compôs um poema que um dos personagens vai recitar várias vezes no palco, mas sucede que este último fica doente pelo que é o seu substituto que lê (p. 22). Fala de objectos nunca vistos ou de máquinas nunca pensadas ou de plantas monstruosas (p. 39). O papel dessas máquinas é fazer passar: transpor obstáculos, atravessar reinos, derrubar prisões e segredos, vencer memórias adormecidas (p. 63). O teatro, os amantes surpreendidos, as substâncias maravilhosas, as personagens mascaradas, os objectos minúsculos, tudo faz parte do repertório de Roussel (p. 23).

Já em Nouvelles Impressions, escreve Foucault, o autor emprega comparações, aproximações, distinções, metáforas, analogias, através de coisas e palavras, com repetições sem fim (p. 19). Nos textos de Roussel, há assim repetições, substituições, retorno do mesmo, diferenças imperceptíveis, desdobramentos, falhas fatais, meticulosidade e concisão, unir e reencontrar (p. 66). Melhor: imagens invisivelmente visíveis, perceptíveis mas não decifráveis (p. 48), em que há lugar privilegiado para a imitação (p. 67). A obsessão de máscaras, disfarces ou duplos e desdobramentos poderia encobrir o talento de imitador que desde cedo se notara nele (p. 141). Talvez por isso, Roussel aconselhasse os seus leitores a lerem a segunda parte das Impressions d'Afrique antes da primeira, de modo a tornar legível o seu conto (p. 64).

Sobre a edição portuguesa Impressões de África, publicada pela Relógio d'Água, retiro o que escreveu Eduardo Pitta (Da Literatura), romance que passou despercebido quando saiu em 1910: "Roussel, que influenciou os surrealistas, os dadaístas, os autores do futuro Nouveau Roman, bem como os artistas e poetas da Escola de Nova Iorque (Kooning, Ashbery e outros), era de opinião que o livro podia, e talvez devesse, ser lido de forma arbitrária, embora aconselhasse os amigos a começar pelo décimo capítulo". 

Roussel vivia à espera de um reconhecimento pela sua obra que acreditava estar injustamente privado. Entende Foucault, em Raymond Roussel, que este, na altura em que redigiu o seu primeiro livro, experimentou uma sensação de glória universal, não um desejo de celebridade mas de constatação física (p. 139). Pierre Macherey, o apresentador da obra de Foucault, lança uma hipótese sobre o que fascinou este ao escrever sobre Roussel, aliás a única obra sobre um autor, um comentário sobre alguém que produziu, contrário ao que ele próprio se dispusera (como se observa em O que é um autor?, a que talvez eu um dia dedique algum espaço aqui). A hipótese é que Roussel consagrou-se a uma obra com tal disciplina, em que cegueira e lucidez parecem conjugar-se em obstinação, excesso e desmedida (p. XIX). Vigiar e Punir (1975) vinha ainda longe, mas a disciplina dos corpos já andava na cogitação de Foucault. E o tema da sexualidade aprisionada fazia também parte do programa de Foucault, como a História da Sexualidade confirmou.