segunda-feira, 18 de fevereiro de 2013

A Estalajadeira de Goldoni

Creio que Mirandolina é mais que uma estalajadeira, é uma rainha, não no sentido da classe social nobre, mas no modo como olha o mundo e compreende as fraquezas e as contradições dos seres humanos. Em A Estalajadeira, de Carlo Goldoni, numa tradução e encenação de Jorge Silva Melo, estão em jogo as diferenças de género, as diferenças de classe e uma época especial de transição de classe moderna: a burguesia. Goldoni foi observador da Revolução francesa, sentindo na pele as alterações sociais: a sua pensão de velhice ser-lhe-ia retirada por ter origem numa decisão real, pelo que passou o seu último ano de vida na miséria.

Previdente, a peça explicita muito bem as lutas sociais em especial as dentro da nobreza enquanto classe social, a antiga e de pergaminho mas falida, a mais nova que comprou os títulos (condes e outros) com dinheiro obtido em empresas industriais ou comerciais. A estalajadeira é uma mulher que organiza o seu negócio (a estalagem, deixada pelo pai) e organiza a sua relação com os os pretendentes ao seu amor. No final, e para desespero do marquês de Forlipópoli (Américo Silva), do conde de Albafiorita (António Simão) e cavaleiro de Ripafatta (Elmano Sancho) e até do criado deste (João Delgado), ela opta pelo seu empregado Fabrício (Rúben Gomes), que lhe garante apoio na gestão do negócio.

Outras personagens são as cómicas (comediantes, uma espécie de peça dentro da peça) Hortênsia (Maria João Falcão) e Dejanira (Maria João Pinho), o oposto de Mirandolina, mulheres frívolas e só com olhinhos para os homens e os seus bens económicos.



Nunca tinha visto a peça, pelo que não posso estabelecer comparações, mas a interpretação de Catarina Wallenstein corre muito bem, solta, divertida e/ou irónica, suave e subtil, a encher o palco. Muitas vezes, os espectadores riem-se com o diálogo entre os pretendentes e a astúcia da mulher que governa a estalagem. A personagem é uma encenadora, está no centro do palco, finge (aceitando os presentes mas não dando nada em troca, como se fosse um jogo por ela controlado), faz de conta que desmaia para provar e desmascarar o cavaleiro, que de distante se revela interessado e mau perdedor, ao tentar agredi-la, o que condiz com o seu apregoado ódio às mulheres.

Goldoni (1707-1793) é um autor que rompe com a estrutura teatral da sua época. Então, os autores traçavam as personagens e deixavam os atores improvisar (commedia dell’arte). Com Goldoni voltou-se ao hábito antigo da escrita das peças completas, que o ator interpretava. Isso valeu-lhe glórias mas igualmente incompreensões. O trabalho dele é a comédia em que o caráter de uma personagem vai sendo revelado (commedia di carattere).

A peça A Estalajadeira está numa curta temporada no Teatro de S. João (Porto), palco adequado a uma peça do século XVIII. Contudo, e por hábito de ver os Artistas Unidos no seu teatro na rua da Escola Politécnica, entre o Rato e o Príncipe Real (Lisboa), senti falta daquele conforto de estar perto dos atores e dos cenários. Jorge Silva Melo indica que a encenação desta peça lhe deu grande prazer, uma cintilante (como adjetiva) obra que traduziu em 1973 e então a destinava a Glicínia Quartin e a Luís Miguel Cintra.

O tradutor e encenador fala de Goldoni como o autor que não vem da literatura – daí o ser tratado de pouco culto – mas do teatro, pois toda a sua vida fê-lo, montou-o, programou-o. A peça leve (comédia) aparece um pouco em contrário a alguma programação dos Artistas Unidos, com autores contemporâneos em situações e contextos novos. Isto apesar de haver nos anos mais recentes uma linha menos dramática daquela que se observa na vizinha Cornucópia, cuja peça atual é um belo texto do padre Tolentino Mendonça, um espetáculo de que procurarei ocupar-me num dos próximos dias.

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