Curt Meyer-Clason (1910-2012) foi o responsável do Goethe-Institut em Lisboa entre 1969 e 1976, depois de ter trabalhado durante mais de vinte anos no Brasil e na América Latina. No continente americano, familiarizou-se com a língua portuguesa e traduziu para o alemão autores brasileiros, como Machado de Assis, Jorge Amado, Clarice Lispector, João Ubaldo Ribeiro, Carlos Drummond de Andrade e João Cabral de Melo Neto.
Em Portugal, traduziria também para o alemão autores como Eugénio de Andrade, Camilo Castelo Branco, Almeida Faria, Carlos de Oliveira, José Cardoso Pires, Fernando Namora, Eça de Queirós, Urbano Tavares Rodrigues e Miguel Torga. Seria o editor de uma antologia de autores (narradores) portugueses Der Gott der Seefahrer und andere portugiesische Erzählungen, Tübingen (1972), depois aumentada em Portugiesische Erzählungen des zwanzigsten Jahrhunderts, Freiburg (1988), onde incluiria Luandino Vieira, então preso no Tarrafal depois da publicação e atribuição de um prémio da sociedade de autores portuguesa. Mas excluiria Joaquim Paço d'Arcos, romancista identificado com o regime, e que, por isso, não compreendia a razão da inclusão de Luandino (p. 151).
Quando chegou a Portugal, com a ditadura vigente, ele transformou o Goethe-Institut. Primeiro, mudou-o da avenida da Liberdade para o Campo Mártires da Pátria. Depois, e fundamentalmente, abriu as portas do instituto alemão às companhias de teatro independentes e aos intelectuais que se opunham ao regime. A ponto de o embaixador do seu país lhe chamar a atenção e os homens do SNI proibirem representações. Por exemplo: nem pensar em Brecht (p. 168) ou Peter Weiss (p. 182). Um dia, um concerto teve de ser remarcado da Aula Magna para o próprio instituto porque não havia autorização do regime português (p. 100). E bastaria ver o tipo de aquisição de livros para a biblioteca em 1970 para se perceber as ideias políticas do homem: Adorno, Benjamin, Habermas, Marcuse, Wittgenstein (p. 104).
Em Diários Portugueses (2013), o seu olhar sobre Portugal é sibilino. O comportamento dos indivíduos, desde o senhor Jesus até ao Herr Santos, passando por Fräulein Lopes, a poetisa Natália Correia ou o escritor José Cardoso Pires, mas também os senhores embaixadores e mulheres nos jantares de pares, ficou registado nesses diários. Há uma espécie de relato sobre a filosofia do imponderável dos portugueses, que encontramos na expressão "mais ou menos" (pp. 188-189) quando se pergunta algo a uma pessoa, como o seu estado de saúde, por exemplo. O livro lê-se de um trago (parei no começo de 1974 para escrever esta nota mas vou rapidamente regressar à leitura). Ruas, lojas, a praia da Caparica e o peixe e o vinho servido num restaurantezinho, nos idos anos de 1970, o contacto com as autoridades, a cultura, o embaixador alemão, as impressões com a mulher Christiane, as constantes referências à cultura literária do nosso país, tudo se lê bem.
Fixei-me em Maria Rita e, por um momento, lembrei-me de Umberto Eco quando, em A Misteriosa Chama da Rainha Loana, a personagem Yambo, com nome de baptismo de Giambattista Bodoni, recupera de um AVC e se pergunta se teria ou não namorado com a jovem e bonita secretária da sua loja de livros antigos. No livro de Curt Meyer-Clason, quase nos apaixonamos por Maria Rita ao pensar como seria ela com a sua blusa cor de mostarda e lenço atrevido ao pescoço (p. 158). Parecia que Maria Rita era a rival de Christiane. Mas basta rever páginas atrás, quando ele nos apresenta Rita Nebelthau, já viúva e que regressara da Alemanha a Portugal em 1968 (p. 117), ex-funcionária da embaixada e que concorrera para secretária do Goethe-Institut, a agente voluntária do seu diretor, ao obter informações da embaixada, cujo titular era um homem bem mais próximo da orientação política oficial portuguesa. A conversa entre Maria Rita e Meyer-Clason (pp. 126-128) faz-nos abandonar qualquer suspeita sobre a relação de ambos.
O que retirei da leitura até agora feita de Curt Meyer-Clason seria a situação de contratados por projeto dos homens (ou mulheres) da rádio. João de Freitas Branco, que falava um alemão perfeito, com traços e gestos de um europeu mimado, no seu fato azul já com lustro, tinha pelo menos três ocupações para sobreviver, como alguns programas de rádio: conversas sobre a sonata de Beethoven, ópera romântica, contraponto em Bach (p. 44). Camila Felisberto, colaboradora a tempo parcial do Goethe-Institut, estudara música e trabalhava no departamento de programas musicais da rádio pública, tratando das encomendas de fitas gravadas para as estações de rádio em Portugal e nas colónias, então designadas de províncias ultramarinas (p. 28).
Leitura: Curt Meyer-Clason (2013). Diários Portugueses. Lisboa: Documenta, 414 p., 24 €
Em Portugal, traduziria também para o alemão autores como Eugénio de Andrade, Camilo Castelo Branco, Almeida Faria, Carlos de Oliveira, José Cardoso Pires, Fernando Namora, Eça de Queirós, Urbano Tavares Rodrigues e Miguel Torga. Seria o editor de uma antologia de autores (narradores) portugueses Der Gott der Seefahrer und andere portugiesische Erzählungen, Tübingen (1972), depois aumentada em Portugiesische Erzählungen des zwanzigsten Jahrhunderts, Freiburg (1988), onde incluiria Luandino Vieira, então preso no Tarrafal depois da publicação e atribuição de um prémio da sociedade de autores portuguesa. Mas excluiria Joaquim Paço d'Arcos, romancista identificado com o regime, e que, por isso, não compreendia a razão da inclusão de Luandino (p. 151).
Quando chegou a Portugal, com a ditadura vigente, ele transformou o Goethe-Institut. Primeiro, mudou-o da avenida da Liberdade para o Campo Mártires da Pátria. Depois, e fundamentalmente, abriu as portas do instituto alemão às companhias de teatro independentes e aos intelectuais que se opunham ao regime. A ponto de o embaixador do seu país lhe chamar a atenção e os homens do SNI proibirem representações. Por exemplo: nem pensar em Brecht (p. 168) ou Peter Weiss (p. 182). Um dia, um concerto teve de ser remarcado da Aula Magna para o próprio instituto porque não havia autorização do regime português (p. 100). E bastaria ver o tipo de aquisição de livros para a biblioteca em 1970 para se perceber as ideias políticas do homem: Adorno, Benjamin, Habermas, Marcuse, Wittgenstein (p. 104).
Em Diários Portugueses (2013), o seu olhar sobre Portugal é sibilino. O comportamento dos indivíduos, desde o senhor Jesus até ao Herr Santos, passando por Fräulein Lopes, a poetisa Natália Correia ou o escritor José Cardoso Pires, mas também os senhores embaixadores e mulheres nos jantares de pares, ficou registado nesses diários. Há uma espécie de relato sobre a filosofia do imponderável dos portugueses, que encontramos na expressão "mais ou menos" (pp. 188-189) quando se pergunta algo a uma pessoa, como o seu estado de saúde, por exemplo. O livro lê-se de um trago (parei no começo de 1974 para escrever esta nota mas vou rapidamente regressar à leitura). Ruas, lojas, a praia da Caparica e o peixe e o vinho servido num restaurantezinho, nos idos anos de 1970, o contacto com as autoridades, a cultura, o embaixador alemão, as impressões com a mulher Christiane, as constantes referências à cultura literária do nosso país, tudo se lê bem.
Fixei-me em Maria Rita e, por um momento, lembrei-me de Umberto Eco quando, em A Misteriosa Chama da Rainha Loana, a personagem Yambo, com nome de baptismo de Giambattista Bodoni, recupera de um AVC e se pergunta se teria ou não namorado com a jovem e bonita secretária da sua loja de livros antigos. No livro de Curt Meyer-Clason, quase nos apaixonamos por Maria Rita ao pensar como seria ela com a sua blusa cor de mostarda e lenço atrevido ao pescoço (p. 158). Parecia que Maria Rita era a rival de Christiane. Mas basta rever páginas atrás, quando ele nos apresenta Rita Nebelthau, já viúva e que regressara da Alemanha a Portugal em 1968 (p. 117), ex-funcionária da embaixada e que concorrera para secretária do Goethe-Institut, a agente voluntária do seu diretor, ao obter informações da embaixada, cujo titular era um homem bem mais próximo da orientação política oficial portuguesa. A conversa entre Maria Rita e Meyer-Clason (pp. 126-128) faz-nos abandonar qualquer suspeita sobre a relação de ambos.
O que retirei da leitura até agora feita de Curt Meyer-Clason seria a situação de contratados por projeto dos homens (ou mulheres) da rádio. João de Freitas Branco, que falava um alemão perfeito, com traços e gestos de um europeu mimado, no seu fato azul já com lustro, tinha pelo menos três ocupações para sobreviver, como alguns programas de rádio: conversas sobre a sonata de Beethoven, ópera romântica, contraponto em Bach (p. 44). Camila Felisberto, colaboradora a tempo parcial do Goethe-Institut, estudara música e trabalhava no departamento de programas musicais da rádio pública, tratando das encomendas de fitas gravadas para as estações de rádio em Portugal e nas colónias, então designadas de províncias ultramarinas (p. 28).
Leitura: Curt Meyer-Clason (2013). Diários Portugueses. Lisboa: Documenta, 414 p., 24 €