sábado, 4 de outubro de 2014

Em Parte Incerta

George Gerbner, fundador da teoria da enculturação, dizia que o consumo prolongado de televisão conduzia a comportamentos menos sociabilizados, como um incremento da violência e uma maior fobia em viver na cidade, com receio de se ser vítima dessa mesma violência. Gerbner, que chegou a reitor da Annenberg School for Communication, baseou as suas conclusões numa análise de conteúdo de programas em horário nobre de televisão realizada ao longo de uma década. Uma investigação tão prolongada pode ser uma marca da sua idoneidade.

Contudo, a sua teoria sofreu contestação, pois não há relação directa ou excluindo outros factores de quem vê muitas horas de televisão passe a ter comportamentos violentos e há pessoas que não vêem televisão e têm comportamentos socialmente desaprovados.

Mas penso sempre no impacto da televisão e, por exemplo, nos jovens que entram em programas como reality-shows. Expostos durante semanas, mostrando a sua beleza pessoal ou as suas tatuagens ou ainda as suas conquistas sexuais, como sobrevivem depois? Passado um período curto de fama e celebridade, como é o resto das suas vidas? Como são vistos pela comunidade a que pertencem?

A televisão é um meio que identifica e que conduz a uma formação superficial de opinião pública. Havia os políticos que se fabricavam na televisão, como um director de programas já falecido dizia conseguir. Ou os jogadores de futebol, os heróis do nosso tempo, que passam vezes sem conta no ecrã e são idolatrados e imitados - nos penteados, na roupa e, em especial, funcionam como modelos de profissão. Mas ainda não tinha visto como a relação entre marido e esposa, com um casamento à beira da ruptura, consegue reorientar-se através da televisão, como o filme Em Parte Incerta (filme de David Fincher) apresenta.

Sim, há perfídia e mau carácter na mulher (Rosamund Pike no papel de Ammy Dunne) e oportunismo, displicência e ambiguidade no homem (Ben Affleck no papel de Nick Dunne). Mas, enquanto ele sai com uma rapariga sua aluna, ela engendra uma vingança cuja cenografia segue os livros que a tornaram célebre em criança (Amazing Ammy). Ela desaparece no dia do quinto aniversário do casamento, depois de três anos a viver em Nova Iorque e os últimos no estado do Missouri, com problemas financeiros e outros. Nick Dunne torna-se rapidamente o suspeito número um, como mostra a primeira parte do filme, relatando o que se vai passando ao longo dos primeiros dias do desaparecimento, com alguns planos do começo da relação afectiva entre os dois. Mas, a segunda parte do filme mostra Ammy Dunne a fugir pelo país, à espera que a justiça prenda e condene o marido a prisão e pena de morte. Falta o cadáver mas a televisão ajuda a fazer justiça popular.

É aqui que recupero Gerbner e penso nos jovens que entram na Casa dos Segredos. No filme, a televisão e os programas de formato talk-show modelam a opinião pública popular, se assim posso designar a opinião expressa pela comunidade a que os Dunne pertenciam. Um advogado célebre em prestar serviço a causas perdidas (Tyler Perry) consegue contrariar o equilíbrio público sobre o assunto. Se um talk-show mostra a desumanidade de Nick para a mulher por quem nutria indiferença, ainda por cima grávida, outro talk-show revela o lado humano e frágil do marido, a pedir que Ammy regresse a casa, pois ele acreditava que ela estava viva. No filme, sabemos que ela engendrou toda a história e matou um antigo namorado mas, para a moral do filme, Fincher ignora isso. O importante é mesmo o julgamento via televisão, as posições pró e contra. Nesta perspectiva, o Ponto de Encontro e o Perdoa-me, programas muito populares do tempo do nascimento da SIC e da televisão privada em Portugal, eram muito ingénuos quando promoviam o reencontro de pessoas que há muito não se viam.

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