domingo, 26 de outubro de 2014

Sangue na guelra

O cenário é mínimo: duas cadeiras, um homem (Graeme Pulleyn) e uma mulher (Rafaela Santos). Fernando Giestas (1978) é o autor da peça chamada Sangue na Guerra/Guelra/Guerra (2011) e publicada na colectânea "Oficina de Escrita Odisseia: Textos Escolhidos", uma edição do Teatro Nacional São João (2011). Ele lembrava a sua ida de barco para muito longe, num mar imenso, para um país que não era o seu mas podia ser o seu. E recordava que encontrou mulheres de olhos negros e pele semelhante. Ele teria dezoito, vinte anos. Ela lembrava a chegada de tantos homens, jovens e de bigode, de olhos claros e pele semelhante. Sabia que eles vinham de outro sítio com outra cultura. A mulher de olhos negros ou o homem de olhos claros aproximaram-se, começaram a ir à praia, ao cinema, apaixonaram-se.

Um dia, os homens, armados, levantando uma enorme nuvem de poeira, aproximaram-se da aldeia. Eles queriam que elas fugissem. Estas ficaram de pé, à espera que a poeira assentasse no chão, e viram os pais, os maridos e os filhos tombarem pelas balas saídas das armas. Era a guerra. O sangue na guelra (juventude, inquietude) tornara-se sangue da guerra. O país que não era o dele mas podia ser dele deixava de o ser.

O curto texto de Fernando Giestas foi sendo repetido, em diferentes ângulos da sala, com os corpos dos actores expressando outros sentimentos. O encenador Rogério de Carvalho quis que os actores fossem também co-autores do texto. Como quem conta a memória, histórias passadas a gente presente, como se um casal lembrasse o que tinha acontecido quarenta anos atrás. Na representação, senti algo tirado do neo-realismo, dos quadros de Picasso, das tragédias gregas. A música, não identificada no programa, enquadrava o dramatismo dos corpos que tinham perdido a felicidade e a que, agora, só restava a recordação.


Lembrei-me da guerra entre Israel e a Palestina, mas a história não se encaixava porque não há mar longínquo entre os dois países (ou territórios). Tive de ajustar a minha própria memória. Senti-me comovido. O barco demorou oito dias a chegar de Lisboa a Luanda. Sempre tortilha ao almoço e ao jantar. Havia quem aproveitasse o tempo a jogar cartas, algo que nunca me seduziu (os jogos que aprendi, esqueci logo a seguir). À chegada, havia um velho comboio puxado a locomotiva de carvão, a única viagem que fiz num comboio desse tipo.

Fernando Giestas e Rafaela Santos são fundadores da Amarelo Silvestre/Magnólia Teatro, a partir de Canas de Senhorim (2009). A peça, agora representada no Teatro Meridional, foi escrita sob orientação de Jean-Pierre Sarrazac.  Ver apresentação da peça aqui.

Sem comentários: