quinta-feira, 30 de outubro de 2014

Um de Nós

Três temas centrais: política, amor e faits-divers, apresentados por frases curtas, num encadeamento lógico. Dois homens e quatro mulheres, sentados numa cama, dissertam deste modo sobre o mundo e as coisas que os preocupam. O grupo de artistas é sénior, com mais comedimento, sabedoria e ternura do que se fossem artistas mais jovens. Por vezes, são intimistas, combinando o bom senso e as coisas mais pessoais. Em especial na última parte, por um lado, mais próxima da vida de cada um (os sucessos, os muitos insucessos, os medos, os pequenos pecados), mas, por outro lado, a parte mais frágil da peça. Embora haja universalidade, os assuntos na última parte são pessoais e, muito embora tenham sido escritos pelos artistas, sem conhecimento (verídicas mas sob anonimato) uns dos outros, cada um dos artistas sabe a quem pertencem as palavras.

Assim, a fragilidade da peça é a nossa fragilidade enquanto seres humanos. Dou um exemplo: ao ouvir as vozes das três "meninas da rádio" (Júlia Guerra, Helena Falé, Maria João Baião), lembro de quão poderosas eram com as suas vozes percorrendo o "éter" das ondas. O que diziam, as músicas que anunciavam, o contexto cultural em que se envolviam, chegavam aos meus ouvidos e funcionavam como lei, como regra. A rádio é o meio mais misterioso, pois o reconhecimento da pessoa a quem pertencia cada voz era difícil num tempo atrás, sem revistas semanais ou programas de televisão. Agora, estavam ali, a falar da velhice, da doença, dos medos, da saudade do pai e da mãe e da escola e dos amigos, da falta de dinheiro ou da situação política atual.

Peter Vandenbempt, em entrevista reproduzida no programa que acompanha a peça, fala da energia destes velhos artistas, do seu maior arrependimento quando olham para a vida em comparação com artistas mais jovens, da abordagem mais cómica de situações bem mais trágicas (e os risos que se ouviam nos espectadores foi prova disso), se quisermos uma perspetiva mais melancólica e nostálgica. Diria ainda na entrevista que a peça não fala de reis e de rainhas mas de pessoas vulgares como nós - Um de Nós. A política assume aqui uma posição de grande importância, com cerca de 200 declarações sobre o tema. Estratégia, traição, compromisso e senso comum entram nesse conjunto. O autor principal do texto assume, na mesma entrevista, que ela começou a ser escrita num ambiente de antipolítica na sua Bélgica, traduzido num número elevado de votos na extrema-direita. A sua peça é uma espécie de libelo e de apoio à discussão livre dos temas que interessam ao bem público.

A Companhia Maior, responsável pela peça, é composta por artistas com mais de 60 anos, oriundos de áreas como a dança, teatro e música, criada em 2010 por iniciativa de Luísa Taveira, "com a missão de promover a criatividade na idade maior, em contacto com as várias gerações de criadores e no contexto interdisciplinar da criação contemporânea".

Elenco: Carlos Fernandes, Elisa Worm, Isabel Simões, João Silvestre, Júlia Guerra, Maria Helena Falé e Maria João Baião. Encenação: Peter Vandenbempt. Texto de Peter Vandenbempt com o elenco e Henrique Neves. Cenografia: Emma Denis. Teatro Maria Matos.


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