Textos de Rogério Santos, com reflexões e atualidade sobre indústrias culturais (imprensa, rádio, televisão, internet, cinema, videojogos, música, livros, centros comerciais) e criativas (museus, exposições, teatro, espetáculos). Na blogosfera desde 2002.
quarta-feira, 19 de outubro de 2016
De Ed. B. Silverman a Álvaro Belo Marques, além de memórias da rádio
O convite falava em obras (três novelas policiais) de Ed. B. Silverman lançadas hoje ao final da tarde no Chiado Clube Literário (O Caso da Mulher com Olho de Vidro, Crime Cracker e O Papagaio Assassino), com apresentação do jornalista João Paulo Guerra.
Uma pergunta fez João Paulo Guerra: quem é este autor Ed. B. Silverman? Ele leu os livros e descobriu que uma carta do autor ao editor dos livros indica que ele foi aos 24 anos trabalhar para um grande jornal diário - o que é uma quase verdade - e teve uma vida atribulada em várias partes do mundo - o que é uma quase mentira. João Paulo Guerra conclui: o autor é ou não é Ed. B. Silverman. Segunda conclusão: é um pseudónimo. E, ao chegar à última página do terceiro livro, leu uma nota do agente literário para o tradutor e descobriu que este assina ABM - Álvaro Belo Marques. Das novelas, o apresentador disse serem antipoliciais, com estereótipos nas personagens e veia satírica nos enredos, com um irresistível humor e uma cultura sólida, sustentadas num português primoroso, oral e malandro, assumido em desacordo ortográfico.
Nascido em 1931, Álvaro Belo Marques (ou Ed. B. Silverman) foi jornalista do República, onde o seu nome apareceu no cabeçalho como diretor apenas um dia (no processo agitado vivido no jornal), trabalhou na Emissora Nacional em dois períodos distintos (1950-1958; 1974-1975). O mais importante foi o do período revolucionário, como diretor de programas. João Paulo Guerra trabalhou sob as suas ordens. Após 25 de novembro de 1975, os dois e mais outros profissionais da estação sairiam. Álvaro Belo Marques rumou a Moçambique, onde viveu e trabalhou entre 1977 e 1988. Ele ensinou os jornalistas daquele país, ao fazer parte da Escola de Jornalismo como professor de jornalismo e quadro da direção, e foi fundador da televisão experimental de Moçambique e seu primeiro diretor. A 1 de agosto de 1980, pôs as crianças das escolas de Maputo a fazer e lançar papagaios de papel, imagens poéticas que utilizou para a televisão.
Além dos livros agora publicados, o autor escreveu Quem matou Samora Machel? (1987), colectânea de poesias Auto da Fé e O Barco Encalhado, cuja edição italiana (La Nave Arenata, 1993) foi premiada. Neste, o autor refere-se à ilha de Moçambique, que "viu toda a espécie de barcos, desde a piroga à caravela: pangaios, escunas, lanchas, chatas, barcas, galeras, chalupas, paraus, veleiros, fragatas, canoas, palhabotes de velame latino. Viu pretos, indianos, brancos, amarelos, mistos, rosados". Dos livros apresentados hoje, o autor disse que o primeiro foi uma prenda de Natal, em ano em que não tinha dinheiro para prendas. Contente, viu pedirem exemplares em janeiro do ano seguinte. Fiquei sem saber se falou ou não metaforicamente, mas valeu pela ideia sonhadora.
Faz hoje exatamente um ano que eu entrevistei Álvaro Belo Marques para a minha investigação da rádio. Impossibilitado, na altura, de conduzir, fui de autocarro até Montemor-o-Novo e apanhei um táxi até à aldeia onde ele habitava. No regresso, gentilmente, trouxe-me de automóvel até à estação de autocarros. Então, a 19 de outubro de 2015, ele disse-me, entre muitas outras coisas: "Eu estava com o João Paulo Guerra durante a emissão do primeiro de maio de 1974, que durou umas 18 horas. Ele estava a coordenar os repórteres e eu a coordenar o programa, portanto estávamos os dois na cabina, cá em baixo. Não vimos absolutamente nada do primeiro de maio, e ainda hoje o lastimamos".
E, sobre os acontecimentos de 7 de setembro de 1974 (tomada de Rádio Clube de Moçambique por um grupo de brancos contrário à independência de Moçambique para a Frelimo), contou: "Fiquei sozinho, com a Emissora [Nacional, Lisboa] à minha responsabilidade. Não me apercebi da gravidade do assunto até ao momento em que, no dia 7, vou a sair às 18:30 e o porteiro me diz: «estão a chamá-lo da central, anda tudo doido à sua procura». A central era a central técnica de programas. Fui à central e diz-me o chefe da central que havia problemas em Moçambique e que era preciso tomarmos medidas. [...] comecei a organizar, com o [Fernando] Frazão, uma emissão dirigida a Moçambique. Falei para os emissores, com o engenheiro que estava de serviço, e disse-lhe para ele orientar as antenas para Moçambique e perguntei-lhe se podia pôr dois emissores em paralelo, se dava o dobro. Ele disse-me que não dava os 200 kW que eu queria, mas sim 160, 170, máximo 180 kW. Na condição de eu assumir a responsabilidade, pôs os emissores ao máximo e disse que demorava meia hora. Combinei isto tudo com o Frazão e, à hora exacta, o novo centro de regência entra com canções de luta para Moçambique e com noticiários do dia – o que tinha sido ao meio-dia, à uma, às duas, fomos metendo em directo para Moçambique, em ondas curtas. Tive a oportunidade, uns anos mais tarde, em Moçambique e com pessoal da rádio, de ficar a saber que nunca se tinha ouvido tão bem a Emissora Nacional como nos dias 7, 8 e 9 e que as pessoas estavam encantadas por terem um noticiário sobre o que se estava a passar em Portugal".
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