sábado, 25 de março de 2017

Tertúlia Recordar os Esquecidos


A tertúlia de hoje Recordar os Esquecidos (livraria Almedina, Saldanha, Lisboa) teve como convidados Luís Carmelo (esquerda) e Paulo Moreiras (direita), com moderação de João Morales. Os dois convidados evidenciaram a qualidade da literatura portuguesa, com autores muito esquecidos e à procura de resgate. Hoje, foi dito, vivemos sob o ditame da atualidade, da realidade que se remove permanentemente. Paulo Moreiras apresentou livros de Guilherme Centazzi (O Estudante de Coimbra), Fortunato da Câmara (Os Mistérios do Abade de Priscos), Bento da Cruz (Histórias de Lana-Caprina), António Manuel Policarpo da Silva (O Piolho Viajante) e João Palma Ferreira (Vida e Obra de D. Gibão). Já Luís Carmelo falou de livros de José Almada Negreiros (Nome de Guerra), Malcom Lowry (Através do Canal do Panamá), Patrícia Melo (Inferno), Adolfo Bioy Casares (A Invenção de Morel) e Maria Judite de Carvalho (Tanta Gente, Mariana).

Retirei algumas ideias. Em Paulo Moreiras, a confissão da influência do livro de João Palma Ferreira no seu primeiro romance, a este dedicado (A Demanda de D. Fuas Bragatela, 2002). Em Luís Carmelo, a emoção com que recordou Maria Judite Carvalho, casada com Urbano Tavares Rodrigues. Quando ia a casa deles, ela abria-lhe a porta mas afastava-se silenciosa. De Guilherme Centazzi, médico, foi destacado o seu papel pioneiro no romance português, mesmo antes de Alexandre Herculano e João Almeida Garrett, ele que foi estudante em Coimbra e diretor de dois jornais, um deles com o propositado nome Desenganos da Vida. Do livro de Fortunato da Câmara, destacou-se as viagens de noventa e tal histórias em torno da culinária. Por exemplo, a distinção entre porco com ameijoas e carne de porco à alentejana, modo de referir a alimentação do porco com peixe dado pelos pescadores do Algarve. Sobre o livro de Bento da Cruz, Paulo Moreiras falou do recorte satírico, de histórias bem humoradas, para não se andar com ar de enterro. Talvez o Piolho Viajante tenha merecido a mais divertida leitura. O dito piolho viajou por 72 cabeças no Terreiro do Paço, numa época em que este sítio era o local onde tudo acontecia, de festas a autos-de-fé e a touradas. O pequeno bicho passou por cabeças como boticário, estudante, caixeiro, ladrão, criada e velha gaiteira. Para quem quiser estudar a época e as suas expressões linguísticas, o livro de António Manuel Policarpo da Silva (1802) é aconselhável.

Para Luís Carmelo, se Almada Negreiros é recordado hoje pela bela exposição patente na Gulbenkian, o livro que ele levou para a tertúlia representaria três novidades: dar voz à noite, o eu que se interroga e o primeiro romance que alia a ficção à reflexão. De Malcom Lowry, em tradução de Ana Haterly, existe um universo de perda, errância e loucura, de ser deserdado, de tempestade interior e de solitário. O livro de Patrícia Melo, autora que foi jornalista e guionista e partilha muitas ideias com o escritor Rubem Fonseca, percorre a favela do Rio de Janeiro e dá um lado mitológico, com histórias de crianças que sobrevivem num mundo deveras hostil. De Adolfo Bioy Casares, livro escrito no ano da invasão de Paris pelas tropas nazis, há uma escrita do fantástico, com a personagem principal a ser objeto de uma projeção virtual. Isolado numa ilha, há uma máquina que produz imagens irreais. Sobre o livro de Maria Judite de Carvalho, duas notas: um grande elogio a um romance de género e retrato impiedoso de uma época (1959, com um regime político fechado a tudo); um pedido para as suas obras serem republicadas, dado ela estar injustamente esquecida (contudo, Tanta Gente, Mariana tem uma reedição de 2010).

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