quarta-feira, 11 de julho de 2018

Vida de telefonista

A leitura da tese de doutoramento de João Moreira dos Santos sobre relações públicas e estudo de caso da Anglo-Portuguese Telephone (APT) levou-me a procurar material que tinha recolhido sobre essa empresa e que há mais de 30 anos não via e, por isso, não trabalhei em termos de investigação histórica. Agora, por exemplo, encontrei dois documentos que me elucidaram sobre a vida da telefonista e a precariedade de trabalho no final da década de 1940. Em ambos, expurguei os nomes das intervenientes.

Um deles é de 1948. Para crescer economicamente, a APT fez contratos leoninos com os empregados. A telefonista admitida entrava na reserva eventual, fora de regalias (serviços médicos ou vencimento quando doente) e sem aviso prévio se o posto de trabalho fosse extinto. Há um parágrafo mais elucidativo do que outros: trabalho temporário e serviço em dias isolados ou em determinadas épocas, como o verão.

O outro documento traz dados ainda mais relevantes, a partir da ficha de avaliação de pessoal de uma agente da central telefónica da Afurada (Vila Nova de Gaia), com contrato estabelecido em abril de 1946. Se, pelo primeiro documento, a precariedade resulta da necessidade de preencher vagas por férias, pelo segundo documento, toma-se conhecimento de uma empregada a residir no local de trabalho, com apoio da colaboração de familiares. Pelo documento, não se sabe que exigências e regalias se colocaram à empregada, mas admito que o contrato tivesse balizas de apoio social e médico semelhantes (ou, por isso, inexistentes). A estação onde a agente ficava a trabalhar era no lugar da Alumiara, em Canidelo. Não andarei longe da localização se a colocar na rua da Bélgica, entre Afurada de Cima e Lavadores, ainda hoje uma via de acesso essencial no percurso do centro de Gaia às praias.

A unidade de secagem de bacalhau, algumas fábricas de cerâmica, lavradores mais abastados, donos da frota pesqueira (pesca artesanal), lojas (mercearias e padarias), profissões liberais (como médicos), possivelmente já alguns concessionários da praia de Lavadores e o pessoal da antena de rádio dos Emissores do Norte Reunidos seriam alguns dos clientes da central telefónica. A estação da Afurada estava caracterizada como de tráfego médio.

Nessa época, a agente já era casada. O filho nasceria ainda em 1946 e a filha em 1950. Logo no ano do contrato, o marido foi autorizado a fazer serviço e para apoio da agente entrou uma empregada (criada) ainda em 1949. O pai da agente obteria autorização para residir na casa-central telefónica por um período curto em 1950 e em definitivo em 1954. Uma prima da agente, nascida em 1938, foi igualmente autorizada a residir no mesmo lar em 1950 mas impedida de trabalhar, assunto revogado em 1951 quando a jovem atingiu 14 anos de idade. O trabalho na central telefónica era 24 horas por dia, 365 dias por ano. Daí, a pequena equipa de quatro adultos: agente, marido, pai e prima. Talvez a empregada ainda ajudasse em algum momento.

Uma visitadora avaliaria o trabalho regular da agente telefonista da estação. A visitadora seria uma encarregada, já com experiência de serviço, correspondente à vigilante, que, na central com muitas telefonistas, zelava pelo bom atendimento e resolvia situações de telefonemas mais complexas. No caso presente, a tabela de avaliação geral não foi totalmente simpática para a agente: em cinco anos observados, 18 meses com muito bom, 16 com bom, 12 com sofrível e 11 com mau e 3 muito mau ou péssimo. O serviço começou a melhorar em 1952. Uma razão plausível para a melhoria seria a entrada da jovem prima, com o alargamento da equipa.

A remuneração mensal era de 400 escudos em 1946, tendo subido a 500$00 em abril de 1953, quatro anos depois do começo do contrato. Uma gratificação ou bónus anual (espécie de subsídio de férias de valor variável e atribuível ou não) não atingia o salário mensal, a oscilar entre 250$00 e 375$00, mas chegou a mil escudos em 1955.

Como seria garantir a subsistência de um agregado de oito pessoas com 400 escudos? O aluguer mensal de 120$00 era retirado do vencimento ou funcionava como usufruto? Há uma observação, em julho de 1951, que indica ter sido retirado o subsídio para a luz por ele ser incorporado no subsídio da energia, o que significa haver outros pagamentos não identificados nesta folha de pessoal. Apesar de muito distinto, podemos comparar aquele salário com preços de roupa de uma loja de luxo, em 1950, a Casa Africana: “Se a ouvinte vai para a praia, termas ou campo, não se preocupe com as suas toilettes: a Casa Africana tem modelos de vestidos todos diferentes ao preço de 200$00 a 250$00. Vestido de lantoc a 300$00. Vestido de linho a 350$00” (Arquivo Nacional Torre do Tombo, SNI, Caixa 791).

Uma última observação: o casamento estava vedado às telefonistas das maiores centrais mas não às agentes das centrais manuais de bateria local ou bateria central, possivelmente por força do isolamento profissional.




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