O velho estava à espera da morte. Talvez dentro de uma ou duas semanas, no próximo mês ("Em breve estarei morto finalmente apesar de tudo"). Já não veria passar as festas, como a Assunção. É um longo solilóquio de um homem marginal, sem abrigo, ao mesmo tempo que uma espécie de filósofo. A longa vida servira para isso - para olhar a realidade e dar um retrato. Incluindo uma discussão científica.
Agora, que esperava a morte, sentia a falta de um amigo para conversar. Ou da mulher, que nunca teve, e, por consequência, dos filhos e dos netos ("Nunca amei ninguém, acho eu, senão lembrava-me"). Podia comentar o que pensava de cada um e aguardar o jantar, num lugar reconhecido pelos outros. Por isso, falou do pai e da mãe, de memórias muito antigas.
Rapidamente nos apercebemos que as relações com eles não foram boas. O pai, que lhe chamava aborto, morreu cedo. À mãe, chamava-lhe Mad (o d servia para distinguir de má). A mãe chamava-lhe Dad, nome que não era o dele, mas talvez lhe lembrasse o seu pai (marido dela). Ela era muito nova quando ele nasceu, pelo que as idades de mãe e filho não eram muito distantes, em especial quando ele já estava a envelhecer. Ele visitava-a e comunicava com ela por código, em especial para obter dinheiro. Ela falava com a dentadura postiça, como se fossem castanholas.
Dele, fica-se a saber que andou na escola, onde aprendeu muito, incluindo geometria. Mas não se sabe se e onde trabalhou. Talvez tivesse sido sempre vagabundo. A sua vida de homem isolado levou-o a encontrar jogos e entretenimentos próprios, como o dos dezasseis seixos que ele armazenava nos seus quatro bolsos. Como chupar cada um deles sem saber que já o tinha chupado antes dos restantes?
Em jovem, gostava de andar na rua, recordando que deixava a mãe à janela. A parede era cinzenta, o friso da janela era verde e a mãe, à medida que se afastava de casa, era um ponto delgado branco a acenar com a mão. Ele detestava a cor branca. Até sonhava com animais de cor branca, o que aumentava a sua fúria. Naqueles tempos em que ele esperava morrer, uma tarefa muito lenta, ele queria ter menos fúrias e estar calmo. O que era difícil.
A apreciação que o velho faz de si não é agradável. Há um momento em que o velho se reconcilia com a vida, ao dizer que não se arrependia de nada do que fizera na vida.
Beckett não fez um retrato feliz da humanidade. E João Lagarto representou muito convincente no papel da personagem. Um sobretudo roto e cheio de pó, o cabelo despenteado, com tosse frequente, algumas imprecações de permeio, uma queda no chão mas o retomar da energia, os passos lentos, a voz por vezes forte e por vezes mais íntima e próxima dos espectadores.
Seria no novo Teatro do Bolhão (Porto), agora tornado centro por excelência da cultura da cidade, que João Lagarto representa Começar a Acabar, monólogo escrito por Samuel Beckett para o amigo Jack MacGowran. Na estreia, teriam sido convidados os mendigos de Dublin para assistir. João Lagarto, que estreou em 2006 no Teatro Nacional D. Maria II, que eu não assistira, voltou à peça.
À Espera de Godot e Ah, os Dias Felizes são as peças mais conhecidas do autor irlandês que viveu uma parte significativa da sua vida em Paris. Da atual peça, que começou por ser a agregação de textos fragmentárias de Beckett, pode ver-se um curto vídeo aqui.
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