Sou mais velho que os jovens que usam calças de ganga com tecido rasgado ou mesmo com buracos. Demorei a perceber a razão, pois só agora, ao revisitar a exposição de Miró, compreendi o sentido da moda.
Na fase final da sua vida, o artista catalão tratou mal as telas que pintava. A tela deixara há muito de ser meio de representação naturalista e parecia esgotar a criatividade estética abstrata. Os símbolos presentes em muitas das obras de Miró também pareciam perder a inocência e a alegria de anos antes. A compra de telas tornara-se mais fácil economicamente. Faltava desprezar o meio, fazer-lhe perder a dignidade de o usar para comunicar, mas dotá-la de uma nova vida. Daí os golpes, os cortes, os buracos na tela - como se observa na obra exposta em ponto alto da casa de Serralves.
Num dos filmes que acompanham a exposição, vê-se como as telas eram tratadas pelo surrealista: queimadas, cortadas a estilete, com a tinta a ser derramada sem qualquer intuito figurativo mas apenas aleatório. O artista olhava para o resultado do que fazia, à medida que a tinta se espalhava, caminhando por cima da tela e da tinta ainda fresca. Queimar, limpar com um pano, voltar a colocar outra tinta com um dedo, virar a tela do avesso, cortar com um estilete ou tesoura - eis algumas das atitudes até à conclusão do quadro. Depois, assiste-se a uma exposição de quadros no jardim da sua residência. Pelos buracos, observa-se a natureza, as árvores, as folhas, o chão, uma parcela de edifício.
A tela já não se esgota nas suas formas e dimensão mas interage com o exterior, criando outro mundo de interpretação. É o mesmo com a roupa esfarrapada. Passado um período de carência, em que o roto era sinónimo de pobreza, a sociedade da abundância recuperou esses traços e esteticizou-os. A arte surge mesmo do que seria inimaginável.
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