Textos de Rogério Santos, com reflexões e atualidade sobre indústrias culturais (imprensa, rádio, televisão, internet, cinema, videojogos, música, livros, centros comerciais) e criativas (museus, exposições, teatro, espetáculos). Na blogosfera desde 2002.
terça-feira, 25 de abril de 2017
Reputação na obra de Kenji Mizoguchi
A Mulher de Quem se Fala (1954), Os Amantes Crucificados (1954) e Contos da Lua Vaga (1953) são os primeiros três filmes da mostra de cinema do japonês Kenji Mizoguchi (1898-1956) na sala Nimas. As instituições japonesas antes e logo após a II Guerra Mundial estão ali patentes. Dois deles remetem para um universo feudal, de lutas militares e de constrangimentos morais.
O que mais me impressionou nos filmes, a preto e branco, foi a condição servil da mulher. O próprio andar, de passos muitos curtos, porque o vestuário não o permitia, denota essa subalternidade. Mas, apesar de tudo, o papel delas mostra-se bem melhor que o dos homens, sabujos, subservientes, rastejantes perante o poder que os defrontava no momento mas prontos para a maquinação e traição, que buscam mundos e glórias imaginárias que só existem nas suas cabeças, pois a realidade é mais baixa.
O termo reputação é o que aparece com mais frequência. Numa sociedade muito hieraquizada, a reputação de uma casa, face às outras da cidade, surge como um bem quase absoluto. Numa altura em que o Japão recuperava da destruição física e psicológica da guerra, com as instituições a serem substituídas, a ideia de tradição jogava com a modernidade. Tradição queria dizer longevidade e reconhecimento externo. Quer o mestre impressor em Os Amantes Crucificados quer a madame dona do bordel em A Mulher de Quem se Fala lutam para que a reputação - quer dizer o bom nome das suas casas - se mantenha, numa teia de relações sociais, culturais e económicas.
A sociedade de troca e de dinheiro torna-se mais evidente em A Mulher de Quem se Fala, porque a profissão da gueixa inclui a necessidade de amealhar algum dinheiro para pagar remédios para o pai ou evitar que a irmã mais nova caia na profissão. Em A Mulher de Quem se Fala há um outro traço. A filha da madame veio de Tóquio do século XX, onde estudara, e tinha vergonha da mãe ter uma casa de gueixas. Mas, no final, assume o negócio comercial e tem uma relação de trabalho com as gueixas. Um cliente comenta até: temos uma madame nova e veste à ocidental, prova de uma transformação. O homem do filme, um médico que a madame gostava para casar, apaixona-se pela filha. Esta, ao ver a transferência de atenção do médico, acusa-o de crueldade e repele-o brutalmente, numa defesa de família e da condição feminina. De igual modo, os camponeses e artesãos de Contos da Lua Vaga abandonam as mulheres em busca de melhores condições de vida e de ilusões: um quis ser samurai, outro ganhar dinheiro com as suas olarias. Ambos ficam presos na sua imaginação e regressam pobres mas mais sábios.
A influência do teatro (marionetas Bunraku e Kabuki) no cinema de Mizoguchi é notável, desde o genérico até espetáculos apresentados na trama dos filmes, como em A Mulher de Quem se Fala, com os resultados das peças a encaixarem-se na narrativa do filme. Uma vez mais, a tradição de costumes e de cultura aparece associada ao filme.
Um outro apontamento: o da condição de classe social. Por casamento, a senhora de Os Amantes Crucificados sobe de posição e mantém o equilíbrio social para a sua família, cuja casa estava em decadência. Mas, ao fugir com o impressor servo, a condição dela baixa drasticamente. Do mesmo modo, o mestre impressor deve a sua posição hierárquica superior ao seu negócio e à sua capacidade de gerir empréstimos a funcionários do Estado. Como a mulher foi condenada à morte por adultério, o poder simbólico dele fica destruído. Em seu lugar, um antigo seu colaborador assume a capacidade de imprimir calendários imperiais e criar uma nova teia de empréstimos a funcionários superiores do Estado.
Último pormenor: a importância de cidades como Quioto e Osaca. Cidades relativamente perto uma da outra, poderosas durante séculos e também rivais, assumiam o papel de atração das populações em seu redor. O comércio (caso da olaria), o poder do Estado e das instituições e as profissões (como a de impressor) eram elementos de forte atração. A rua do comércio, as lanternas que iluminam as casas, o interior das mesmas sem o mobiliário como o conhecemos do Ocidente, o vestuário (caso do quimono) constituem outros elementos fortes nos filmes de Mizoguchi.
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