segunda-feira, 10 de junho de 2019

Bernardino Pires (10)

A assinatura da fotografia, no canto inferior direito, indica BPires 1966. A imagem revela três centros de atenção. Seguindo de cima para baixo e no sentido dos ponteiros do relógio, há um cartaz da SNCF (Société Nationale des Chemins de fer Français) e mostra uma jovem sentada e encostada a lugar confortável, de ar jovial e com roupa a lembrar o verão. Era uma época de grande emigração para França e Alemanha e muitos dos portugueses que queriam fixar-se naqueles países viajavam certamente com comboios ali destinados (embora com mudança em Hendaia, devido à diferença de bitola face a França).
O segundo centro de atenção é a cabina telefónica (telefone público). Cerca de 30 anos antes do início da massificação do telemóvel, o telefone público era uma forma de contacto muito usado em especial na rua ou em locais de férias e de grande movimentação de pessoas. O modelo de cabina era vetusto, de madeira e um manípulo pouco prático para abrir a porta. Dois anos depois da fotografia, a identificação da empresa mudaria - em 1968 a inglesa APT dava lugar à portuguesa TLP (Telefones de Lisboa e Porto), a primeira empresa pública do país a par dos CTT.
O último ponto de atenção - e quiçá mais importante - é o do casal de meia idade, certamente a aguardar o comboio de regresso a casa, evidenciado pelo olhar de ambos para o lado direito da fotografia. Seria final da primavera, pela análise da roupa ligeira da mulher e sapatos abertos em frente e pelo guarda-chuva do homem, a precaver um aguaceiro. Além da mala de senhora, conto quatro malas ou sacos: um saco de sementes, uma mala de viagem e uma mala mais pequena para transportes de produtos frescos - podia ir de legumes a um gato. Há ainda um saco de asas, que a mulher protege com a mão esquerda.
Reparo nos rostos do casal. Ele, de barba por fazer e chapéu na cabeça, parece confiante no futuro. Ela tem um ar pensativo, não tão confiante mas a aparentar serenidade.
Talvez a fotografia de Bernardino Pires traga um quarto centro de atenção, agora por oposição: a publicidade, com juventude, conforto e apelo à viagem, é a vida imaginada como ideal; o retrato do casal, com a sua transumância, é a vida real, bem menos glamorosa e mais dura. Ou escrito de outra maneira: a modernidade expressa no cartaz distancia-se da tradição do modo de vida do casal forasteiro.
Última especulação minha: o casal estivera no Porto a visitar familiares e amigos e regressava à terra, com provisões agrícolas. Para mim, eles viajariam para Penafiel ou Marco de Canaveses.
[fotografia de Bernardino Pires, espólio de Daniel Pires. Originalmente, publicada em https://www.facebook.com/groups/1628946184001729/]


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